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A arte de mover o coração para a Luz


Um arranjo musical, composto por melodias, harmoniosamente interpretado, pode reconduzir o som caótico-primordial para verdadeiros canais de irrigação da consciência espiritual mais elevada. Uma tarde ensolarada de diálogos fraternais pode transformar para melhor uma sequência inteira de emoções ruins. Poucos minutos dedicados a leitura de um aforismo de sabedoria, pode promover uma mudança de postura moral que seguirá para a eternidade. Essa regularidade do movimento está em todos os graus e dimensões da vida. Assim também para o sentido humano da existência, pois pode a consciência se recolocar diante da própria trajetória, munindo de recursos o seu mundo mental e material. Moldar nossa forma de entender a vida e os acontecimentos é como abrir as portas da casa interior e deixar a bondade entrar. É descobrir que ela é bem-vinda nessa habitação, que é e sempre foi aguardada até que a permitíssemos entrar. Como é bonito ver cada coisa em seu lugar. O que era desorganizado, se organizar, o que estava bagunçado, ficar equilibrado e vívido. Como é bom sorrir quando se está feliz e chorar quando se está triste. Como é bom sermos transparentes, verdadeiros e honestos.



A fagulha primordial crepita em sua força com uma intensidade repleta de direções, vai do mais baixo ao acima em um piscar de olhos, se amplia e se reduz, segue o vento, assinando sua silhueta das curvas da ventania. Gradualmente, essa catarse vai se tornando um processo de educação, um movimento em direção à ordem e ao caminho, que nada mais é que o abdicar de todos os outros caminhos para seguir um que está além de todos os anteriores. Da mesma maneira que se forma o ser, se forma o mundo do ser. Como tudo está conectado, ajeitar os pensamentos, as falas, os gestos, os objetos, ambientes, os horários, as escolhas, é entender que tudo é uma coisa só, tudo respira na mesma atmosfera, tudo, assim, se torna profundo e genuíno para o ser.

Como podemos erguer um templo novo se tentarmos colocá-lo no lugar do antigo templo abandonado, sem retirar todos os vestígios do anterior? Uma nova morada para o espírito é acessar a arte de recomeçar, esse ofício sagrado que as inteligências da criação adquiriram. É o estabelecer de uma nova ordem interior, onde os ministérios da verdade e da compaixão se assentam sobre os seus verdadeiros tronos, o assento da prática, da simplicidade em ação, da humildade manifesta, da compreensão irrestrita. Não há julgamentos no recomeço, pois o único som que se houve é o da criança interior que acaba de nascer, e esse choro ingênuo de um novo despertar, então, vai dando vazão a uma nova história. Os risos sorrateiros, dos quais se ouviu alguém usar para escarnecer, já não são mais ouvidos, os olhares tensos do sofrimento, já foram amenizados pelo colírio abençoado da caridade, que dá sono a ardência de tudo que é exagerado, e dá firmeza e vivacidade ao que é esperançoso diante da fraternidade.

Um aprendizado novo no bem é como uma escolha feita de forma consciente e reparadora, diminuindo danos em nós mesmos e expandindo a consciência espiritual para tudo o que acontece. Como certa vez ditou um preto velho, amigo dos sofredores que se viam angustiados ou desesperados com tantas tarefas e atribulações de nosso mundo moderno:


" Cada pouco numa coisa" (p.35)

Sim, cada pouco numa coisa, sempre um pouco no organizado, sempre reiterando nosso caminho equilibrado, alimentando ele com bom humor e bom senso. Paremos para pensar um instante em como é bonita a palavra “bem”. Tudo o que uma pessoa tem que tem “bem” é bom, não é? É bom estar perto de pessoas “Bem-humoradas”, “bem-vistas”, “bem-amadas”, pois bem, esse entendimento simples, nos faz perceber que, uma vez saindo o nosso coração da paragem flamejante do incerto, passamos a fazer escolhas que, uma vez experimentadas e reforçadas, vão criando ondulações que acalmam a fogueira do incógnito que a tudo consumia. Isso fica mais cristalino de compreender quando experimentamos um gole de tudo o que é contraste dessa manifestação.

Tomemos o exemplo da palavra “mal”. Um ser “mal-humorado” ou “mal-amado” vibra em um conjunto específico de frequência e campo de ação. Estar em um espaço próximo a essa vibração é também sentir um arranjo determinado de sensações, geralmente agitadas ou depressivas. Mas é bom que se diga que o coração de alguém assim também está à procura dessa “terra prometida” da ordem educativo-espiritual, está também à espreita pelo seu reconhecimento diante da Luz que tudo dá conforme a necessidade e o merecimento. Não há como ser de outro jeito porque tudo está em conformidade com a Grande Sabedoria e nada lhe está oculto. Todas as bocas que falam são uma só boca, todas as mãos que gesticulam são uma só mão. Todo o pensamento pensado é um só pensamento.

Geralmente, quando ignora o homem a tudo isso, é como se pensasse assim: “Já que não tenho motivos para reclamar, que tal criar algum?” É muitas das vezes o que acabamos por fazer, distorcer o que há de mais sublime, os profundos ensinamentos que advém do Grande Coração.

A vida não tem problema nenhum. A vida é um lar acolhedor que nos recebe de braços abertos, instigando em nós o conhecimento dessa natureza. Viver bem a vida é como se encantar ao observar a beleza da refração da luz em um cristal, aos primeiros toques do sol da manhã, é como ouvir a canção que encantou a alma, no momento de sua criação, é ver a sublimidade da Fonte de Tudo criando tudo sem reivindicar nada para si. É como sentir um cheiro agradável de algo que faz lembrar a uma boa fase da infância. Ah sim, a vida é um eterno aprendizado, é o mover de nosso espírito para a Unidade de todas as coisas.

Todo ser humano é delicado quando está na busca pelo reconhecimento de si na Luz Suprema. Aí está a força dos que estão no caminho, na simplicidade de sua delicadeza, no telhado de sua casa interior está um portal para o qual adentra sem que ninguém o veja, e retorna de lá sem que ninguém perceba. Essa arte é praticada por todos os que entenderam a lógica da criação. Assim perguntaram os discípulos de Mirdad, quando pediram que o mestre falasse sobre o que é o caminho que conduz a liberdade:

" Este é o caminho que leva à libertação das preocupações e do sofrimento: Pensai como se todos os vossos pensamentos tivessem que ser gravados a fogo no céu, para que todos e tudo os vissem. E, verdadeiramente, assim é. Falai como se o mundo todo fosse um único ouvido, atento a escutar o que dizeis. E, verdadeiramente, assim é. Agi como se todos os vossos atos reagissem sobre vossas cabeças. E, verdadeiramente, assim é. Desejai como se vós fôsseis o desejo. E, verdadeiramente, assim é. Vivei como se o vosso Deus, Ele Próprio, tivesse necessidade de vossa vida para viver a d’Ele. E, verdadeiramente, Ele precisa. (NAIMY, 2014, p. 103).

Esse mover de nosso coração para as coisas de cima, nos leva a pensar em tudo o que está embaixo, nas coisas difíceis que já ficaram registradas nas plantas dos pés. Basta lembrarmos de que os recursos que chegam para fazer a gente se elevar é sempre para o espírito e não para a carne. Um recurso só é ofertado para um fim útil das coisas imutáveis. Só se nasce onde se pode sobreviver. Não é para ficarmos de um lado para o outro a encher a vida de tédio e abandono, porque fazer isso é como andar muito e não sair do lugar ou como nadar contra a posição das ondas de um mar revolto. Lutar contra a vida é sempre perder, porque a vida é soberana sobre tudo o que é justo. Abraçar a justiça e entregar amor é a única forma de alterarmos a composição central da vida.



Todas as vezes que os círculos da Justiça Maior nos procura, sentimos uma leve pontada a nos indicar a necessidade de nos movimentarmos para além do desconforto. Se nos revoltamos com esse estímulo, passamos a agir por constrangimento, o que resulta na incompreensão e na revolta, firmando a inteligência na parcialidade ignorante, mas, uma vez entendendo a Sabedoria por trás dos acontecimentos, encontramos uma ação renovadora, amparada e direcionada para um propósito, assim descobrimos a ordem do bem por trás de tudo. Nas palavras de Emmanuel[1]:

Caminha para frente

Eis a ordem da vida.

Para isso, porém

É preciso te movas.

Medo de auxiliar

Não ajuda a ninguém.

Rompe antigas amarras,

Alija o lastro inútil.

Eleva-te, trabalha,

Age, semeia e cria.

Servir constantemente

É avançar para Deus.

(XAVIER, 2021, p. 20)


Dessa forma o caminho se desdobra. O que é para ser feliz se felicita, o que é para ser explicado se justifica e o que é para ser entendido se aprende a si mesmo. É o conduzir da alma sobre os impulsos básicos, canalizando as boas coisas para o que é nobre e justo, firmando o céu de dentro, burilando em letras douradas a insígnia da solução operante. É a sutil arte de canalizar o fogo interior.

Para onde quer se ande na ascensão evolutiva, o coração deve ir a frente, mas deve ir não de qualquer maneira, parado, descompassado ou acelerado demais, mas com uma regulação completa do ritmo, fazendo de cada pulsar, um som de luz. O coração marca o compasso da alma no mundo, consagrando o ritmo de cada intenção a uma nova realidade que corresponde a natureza do que se é pensado. A emoção deve mover para cima, porque, mesmo em um poço, a única saída é na direção do alto.

O dia que se inicia para o corajoso homem que move o seu emocional para o equilíbrio, desperta sereno ante qualquer agitação. O sol da manhã é como uma fonte eterna de transformações e, tão logo a temperatura se eleve com a chegada intensa da tarde, a única coisa que graça ao meio dia é a fortuna da boa-vontade, mesmo que ao preço do suor incessante. Assim que o outro lado do mundo convoque o sol para si, o crepúsculo, longe de obscurecer as intenções, começa a pratear a semente de estrela que foi guardada no coração do buscador.

O amigo da esperança se esforça por transpor qualquer barreira interior, utilizando um pequeno grão de mostarda para atravessar o maior dos empecilhos. Uma bandeira branca é o seu sinal e sua virtude. A simplicidade é sua companheira em tudo o que faz e em tudo o que pensa, apoiando seus mais sublimes projetos no alicerce vigoroso dessa pedra filosofal.

Afasta qualquer fumaça que atinja sua vista para o além e vive com muita humildade, como se apoiasse um pé sobre o Monte Solimão[2] e outro sobre o Monte Sinai[3], enquanto tenta tocar as constelações do céu através do conhecimento e do sentimento.

Todos os que realizam essa mesma travessia são servidos por ele, um guardião é um candidato que se adianta para um dia ser um excelente anfitrião. Orienta com firmeza os vacilantes e ternura os inseguros. A voz da autoridade dimana das estrelas, reverbera nas montanhas e vibra em sua garganta, demarcando as novas realidades para quem atravesse o portal da pureza de coração. Essa sutil arte é aprendida e aperfeiçoada pelo mediador dessas formas luminosas.


Abençoado seja o caminho dos buscadores e buscadoras!


Paz e Luz do Cantinho dos Anciãos

Raul César


Notas


[1] Emmanuel, foi, em sua última encarnação, o padre Manoel da Nóbrega, um espírito de grande instrução. Dentre tantas contribuições que já deu a humanidade, foi, no último século, o mentor espiritual de Francisco Cândido Xavier. Ditou dezenas de livros pela mediunidade do Chico.


[2] Monte Sinai, ou também denominado Monte Horebe, de acordo com a pesquisadora Danubia Silva, da Universidade Federal de Minas Gerais, é como os israelitas chamaram o ““Monte de Deus”, onde Javé apareceu a Moisés e concluiu a sua aliança com Israel, entregando-lhes as “Tábuas da Lei” ou “Dez mandamentos””. [...] Já a palavra Hörëb, do hebraico “significa “o seco”, “o desolado”, característica apropriada do deserto no qual o monte se localiza.”, (p. 11, SILVA).


[3] De acordo com o Wikipédia, a "Montanha de Solimão (Taht-I-Suleiman) é uma montanha sagrada localizada e local de peregrinação muçulmano na cidade de Osh, no Quirguistão." (2018)[...] A formação rochosa detém essa nomenclatura em homenagem a um profeta do livro sagrado Alcorão. Diz a lenda que mulheres com dificuldade em engravidar, ao subir a monte recebem a graça de engravidar e darem luz a crianças saudáveis.


Bibliografia


GASPARETTO, Luiz Antonio; Calunga. Tudo pelo melhor. Ed. Vida e Consciência, 2002.

MONTANHA DE SOLIMÃO. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2018. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Montanha_de_Solim%C3%A3o&oldid=52063107>. Acesso em: 18 ago. 2023.

NAIMY, Mikhael. O livro de Mirdad. Ed. Pentagrama, 2014.

SILVA, Danúbia Aline. Toponímia bíblica: um estudo dos montes nas escrituras sagradas. S/D. Disponível em <https://simelp.fflch.usp.br/sites/simelp.fflch.usp.br/files/inline-files/S1402.pdf>. Acesso em 18 Ago 2023.

XAVIER, Francisco Cândido. Momentos de paz. ‎ FEB Editora/IDEAL; 1ª edição, 2021.

 
 
 

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