O aprendizado gradual sobre uma nova aurora
- Raul César

- 6 de jul. de 2023
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Atualizado: 17 de jul. de 2023

Ao adentrar em uma compreensão mais profunda de si mesmo, o homem passa a perceber um grande canal de luz que o conduz em muitas direções, de modo semelhante ao que um corpo montanhoso faz com a água que cai sobre si em uma noite chuvosa, água que por suas formações rochosas escorre e fomenta a própria vida, mantendo uma relação de recíproco movimento e alimentação. Quanto mais se percorrem os caminhos em direção à sua base fundamental, mais extensa é a moldura líquida na qual se vê um grande quadro a enfeitar a natureza. Após a ampliação dos cursos d’água no monte-de-si, as cavidades preenchidas logo servem de fonte para pequenos pássaros, que ali dessedentam-se, alegrando-se com as pequenas poças formadas. Assim também o é com o pensamento dos seres que, com pequenas reflexões e proposições, constroem algo benéfico para todas as formas de expressão da vida. O pensamento, sendo esta chave mestra em ação, impressionado pela sublimidade da natureza, aquieta-se em sua fala e movimenta-se em seu silêncio. Um fluxo interminável revela a quietude extrema de sua liberdade.
Logo que as águas se debruçam no entorno do grande corpo, o solo torna-se mais fértil, atento e enérgico. Toda semente ressequida que aguardava a presença luminosa da água é presenteada com um maravilhoso estímulo ao seu desenvolvimento. Assim é com o mergulho conduzido do homem em si mesmo, manifestando-se tal qual é, aos demais. A partir daí todos as pessoas próximas passam também a germinar as boas obras em si, tornando-se vivos, verdadeiramente. Essa existência, poderíamos dizer, é frágil, porque toda vida nova é vulnerável em seus primeiros passos, pois eles ainda podem ser vacilantes, ainda assim, a promessa que está escrita no coração da semente e reforçada pela base que a sustenta, fala das coisas grandiosas que a aguardam, fenômenos capazes de acolher a maior das intempéries e de beneficiar o contexto mais adverso.
Por mais que o caminho condutor para o si mesmo seja inicialmente uma curva para o abaixo, até os seus limites fundamentais, o mistério se completa somente quando se reergue para o acima, quando as promessas são cumpridas e os resultados esperados são vistos. Do mesmo modo, na medida em que desce, o homem está fomentando, influenciando, atuando sobre as coisas para que elas manifestem o seu destino e, quando adianta-se para o esforço de subir, ascensiona com a evaporação de toda a forma que lhe deu origem, transmutando os níveis para o acima. Aí, já não há mais o incentivo à vida, mas a manifestação de própria vida. O observador deste quadro melhor percebe o lirismo dos movimentos sagrados na medida em que os observa de cima. É nesse instante que a natureza vê a si mesma no reflexo das águas dos grandes rios em derredor.
Foi desta forma que o profeta de Al-Mustafá orientou aos que lhe perguntaram sobre o conhecimento de si próprio:
"A fonte oculta de vossa alma precisa brotar e correr, murmurante, até o mar; E assim seria revelado aos vossos olhos o tesouro de vossas profundezas infinitas." (GIBRAN, 2011, p. 35).
No oceano amoroso de uma realidade nova, o ser compreende o que lhe era oculto, pois não se permitia entender, olhava para fora e nunca para dentro. Agora, fitando o que mais importa aprender, acessa o que parecia inviolável, desfruta desse bem, chora e ri, arrepende-se e se transforma, suprimindo a ignorância em seu entendimento. Nada ele domina em seu conhecimento, seu coração agora é um poço de ingenuidade, pois está mergulhado no mar oculto da sabedoria. Inspira, então, o seu aprendizado na luz solar do dia que já anuncia sua chegada, por isso, a tudo ele sabe dizer, mas não diz., a tudo vê com doçura e sem malícia, a tudo ouve com alegria e, às vezes, com resignação. Fala sem exageros e sem ferir a ninguém. Neste ponto, passa a habitar no mundo interno de muitas montanhas, movimentando-as com uma simples pluma, como aquela, de Maat[1]. Neste momento, ele torna-se um vivente da luz, pois sua estadia é harmoniosa com a natureza. Sua vida é uma suave extensão das melodias cósmicas naturais. O som de sua nova proposta é como o silvo da brisa que entrelaçam cristais, ampliando o ritmo do que é justo e bom.

Assim, o praticante da alma vai encontrando e reunindo os ingredientes que lhe farão ascender um sol até na noite mais escura e de chuvosa tempestade, iluminando sua casa interna, onde passará a ver o lugar exato de cada coisa, na medida em que toda a superfície externa vai desfazendo-se instantaneamente, como uma névoa ao toque dos primeiros revérberos solares. Ajunta, então, o peregrino, matéria e espírito em um novo corpo, em uma nova dimensão. Assim, penetra nos mistérios dos elementos, atravessando para a outra margem do canal que o conduziu até ali. Lá, novas estalagens o esperam, para experiências mais aprimoradas. Por isso, o caminho desse aprendizado só poderá ser percorrido por quem anseia fielmente por completa liberdade de consciência.
Um ser livre, portanto, totalmente aliviado no banho puro das águas renovadoras e transformado em seus impulsos ardentes. No sentido de fomentar esse bom termo, aduziu o afetuoso profeta de Gibran, quando lhe foi indagado a respeito do ensinar:
"Nenhum homem pode revelar-vos o que não esteja semiadormecido no alvorecer de vosso conhecimento." (GIBRAN, p. 37, 2011).

Assim como a lua, que rege uma extensão de terra enquanto espera o retorno do Astro-Rei, a alma humana espera, de forma atenta, o reencontro com seu atman[2] purificado, sua versão última, que anula todas as limitações anteriores, e esta essência o conduzirá em uma grande carruagem, até as paragens redentoras do amanhã, nesses novos mundos. Ouvirá o cantarolar dos pequenos seres e, do mesmo modo, ouvirá o sussurro dos seres grandiosos. Dirá a sua verdadeira alma, quando a encontrar, algo semelhante ao que disse Jalaldim Rumi[3], em seu espírito de contemplação:
Quando vejo sua face, as pedras começam a girar! Você aparece; todo o estudo vagueia. Eu perco meu lugar. A água se torna perolada. O fogo aplaina e não mais destrói. Em sua presença não desejo o que achei que desejava, essas três lamparinas suspensas. Dentro de sua face os manuscritos antigos mais parecem espelhos enferrujados. Você respira; surgem novas formas, e a música de um desejo mais conhecido que a Primavera começa seu ritmo como uma grande carruagem. Conduza-a devagar. Alguns de nós caminhando ao seu lado são mancos! (2013, p. 19-20).
O espírito é o mestre. A mente é o instrumento perfectível, a visão é o sentido que percebe a verdade das coisas imortais, assim como a fala é para a manifestação do divino em nós. A primavera é o tempo favorável para o florescer do entendimento. A carruagem solar é o veículo divinal que se apresenta logo ao primeiro alvorecer, por isso o fogo é iluminado, mas parcamente clareia, até que o ser se torne também a própria chama da transformação. Por isso que a água foi limpa, mas o que ela depura é insuficiente, a menos que o ser se torne também um fluído natural. O ar recebeu o sopro de Seu Autor, mas pobremente ventila, até que o ser adentre no fluxo que preenche de todos os espaços e respire nos espirais dos silvos. Para tudo isto, mesmo que que o buscador caminhe devagar, importa voar sobre o despenhadeiro e flutuar por sobre as laminas dos rios, contemplando uma nova luz para o próprio aprendizado.
Que a energia sagrada do Grande Coração esteja com todos nós.
Salve a Grande Luz!
Amor e paz do Cantinho dos Anciãos
Raul César
Bibliografias
ARRAIS, Rafael. Rumi: a dança da alma. Poemas de Jalal ud-din Rumi. 1. Ed. Ayon, 2013.
Dicionário de sânscrito-português Glosbe. Disponível em <https://pt.glosbe.com/sa/pt/atman>. Acesso em 07 jul 2023.
GIBRAN, Khalil. O profeta. Tradução Ricardo R. Silveira. Ed. especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
MACHADO, Tamires. A categoria de personificação divina: debates e levantamentos in BRANCAGLION Jr, Antonio. Semna – Estudos de Egiptologia VI/ Antonio Brancaglion Jr.; Cintia Gama-Rolland, Gisela Chapot., (orgs.). 2ª ed. – Rio de Janeiro: Editora Klínē, 2019.
Notas
[1] De acordo com o dicionário sânscrito-português Glosbe (2023), O termo आत्मन (Atman), de origem hindu, remonta ao sânscrito. Pode ser traduzido como alma ou espírito. Aqui nos referimos a força que habita e anima os corpos materiais dos seres humanos.
[2] O conceito de Maat, segundo a arqueóloga Tamires Machado, de uma maneira simples, representaria, para o entendimento egípcio, um princípio ordenador que estrutura tanto a dimensão da vida humana quanto a dimensão cósmica da existência. (MACHADO, 2019, p. 104).
[3] Jalal ud-Din Rumi foi, nas palavras de Arrais (2013, p. 6-7) poeta, jurista e teólogo sufi persa do século XIII. Seu nome significa literalmente “Revelador da Religião”: Jalal significa “revelador” e Din significa “religião”. Rumi é, também, um nome descritivo cujo significado é “o romano”, pois ele viveu grande parte da sua vida na Anatólia (atual Turquia), que era parte do Império Bizantino dois séculos antes.




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